sexta-feira, 23 de abril de 2010

Porque tem provocações que nunca envelhecem

...


Gostaria de lhe escrever uma carta, uma carta verdadeira, atravessando os estratos de lava e de argila que a vida foi sedimentando sobre todas as coisas. Lhe diria que continuo sendo eu e que conservo sonhos. Lhe diria que ainda amo, embora os sentidos estejam cansados. (...)

Procurei você, meu amor, em cada átomo seu que está disperso no universo.
Recolhi quantos deles me foi possível, na terra, no ar, no mar, nos olhares e nos gestos dos homens. (...)

Lembra-se daquela senhora especialista em Tchekov...
Lembra da explanação que deu sobre as últimas palavras do escritor russo?
Ficamos ambos maravilhados.
Nem eu nem você sabíamos que Tchekov ao morrer tivesse dito: Ich sterb! Eu morro!
Pois é, morreu numa língua que não era a sua.
Que estranho, amou em russo, sofreu em russo, odiou em russo, viveu em russo e morreu em alemão.(...)

Aconteceu de modo natural, assim como surde a lua ou como neva
Alguém se aproximou nas pontas dos pés me tocou na nuca e sussurou: 'cabelos de mel...'
Virei e te beijei.
Depois com o indicador na frente dos lábios que tinham te beijado, sussurei: psssiu.
E te beijei novamente.
Pensava em você todos os dias. E as poucas horas do ano em que podia vê-lo naquele hotel de montanha eram quase um suplício.
E você era feliz, entretanto.
Porque as pessoas podem ser felizes nos seus entretantos. Eu também. (...)

Te procuro no resplendor desse mar porque você o viu, e nos olhos do dono da mercearia, do farmacêutico, do velhinho que vende café gelado, naquela pracinha, porque talvez eles tenham visto você.
Estas coisas também coloquei no bolso, este bolso que sou em mesma e os meus sentidos.

Meu amor, me desculpe se ainda o chamo assim como chamava naquela época, depois de todos esses anos, mas não sei mesmo como chamá-lo.
Como é que uma pessoa se dirige ao homem amado que disse ' tchau, ate amanha', e nos abandonou sem deixar sequer um bilhete de explicação?
Porque você continuou sendo o meu amor por toda a minha vida. Os raros homens que tive foram encontros furtivos para satisfazer a carne, porém todas as noites quando eu tentava pegar no sono, abraçando o vazio da minha cama solitária, eu dizia "meu amor" e imaginava que voltaria a viver o milagre de ter você entre os braços.(...)

Gostaria de lhe escrever uma carta verdadeira, atravessando os escuros estratos de lava e de argila que a vida foi sedimentando sobre tudo.
Lhe diria que continuo sendo eu e que conservo sonhos.
A magnólia floresce. E também as crianças crescem.
Lhe diria: o tempo não espera. É feito de gotas.
Basta uma gota a mais para que o líquido se derrame no chão, se expanda e se perca.
Lhe diria que ainda amo, embora os sentidos estejam cansados.
E que preparei as palavras para a minha lápide:
poucas, porque entre a data do meu nascimento e a que será a da minha morte todos os dias são meus.

Seja o sal da terra, seja o sal do mar.
Seja o sal do suor de todo o meu amor.
Seja o sal sob o sol, seja o sal sobre a ferida.
Seja o sal das lágrimas, o sal da minha vida.

E depois lhe direi que te espero embora não se espere quem não pode voltar.

Todas essas ilhas eu percorri, todas procurando por você.
E esta não é a última. Quem poderia continuar a procurá-lo senão eu?

(----> de uma peça chamada "Salt", que assisti em 2005 e por algum motivo tem voltado à memória constantemente)
direção de Eugenio Barba, textos adaptados de "Carta ao Vento" e "Está Ficando Tarde Demais, de Antonio Tabucchi

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